Nenhuma operação militar pode ter sucesso, sem contar com uma rede de comunicações bem montada e fiável. Por isso, ao contrário do que muitas pessoas pensam, o 25 de Abril começou uns dias antes, com uma acção pouco conhecida, discreta e eficiente, como é timbre das Transmissões, e reconhecidamente fundamental para o êxito do 25 de Abril.
É sempre muito estimulante ouvir da boca dos participantes nos grandes acontecimentos o relato de como eles se desenvolveram, bem como de alguns episódios ignorados pela grande maioria das pessoas. Foi esse o privilégio que tive, ao escutar o General Pena Madeira, na altura um jovem capitão.
A 20 de Abril de 1974, foi-lhe determinado, pelo então Tenente-Coronel Garcia dos Santos, que estabelecesse a integração na rede telefónica automática militar do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, que iria ser montado no Regimento da Pontinha, para que pudesse ficar ligado a todas as unidades do Exército. Analisado o problema, foi decidido que essa incorporação iria ser feita com recurso a um cabo telefónico aéreo de 5 pares, que teria o seu início no Instituto dos Pupilos do Exército e iria percorrer uma distância aproximada de 4,5 km. Trabalho nada fácil, mas que teria de ser feito, e bem, para que não se pusesse em risco o funcionamento eficaz do Posto de Comando, sem o qual as operações do 25 de Abril poderiam estar condenadas ao fracasso.

Os trabalhos, a cargo da secção de guarda-fios, iniciaram-se ao crepúsculo de segunda-feira, 22 de Abril. Pelas 4 horas da manhã do dia 23, tinha-se conseguido lançar o cabo telefónico até ao Colégio Militar, sendo que a tarefa foi facilitada pelo facto de ter sido apoiado nos postes telefónicos militares já existentes ao longo de todo o percurso. Durante a manhã foram efectuados trabalhos de consolidação, tendo esta primeira fase sido dada como concluída pela hora do almoço do dia 23.
Cerca das 20 horas, deste mesmo dia, foi iniciada a segunda fase de lançamento que iria ligar o Colégio Militar à Pontinha. Nesta fase, tudo se tornou mais complexo, dado não existirem pontos de apoio onde o cabo pudesse ser amarrado. A juntar a estas dificuldades, o tempo galopava. Assim, o cabo foi lançado com recurso à capacidade de improviso que parece ser típica dos militares de Transmissões, passando por postes, esquinas dos prédios e até pela copa das árvores. Acresce que as actividades que estavam a ser executadas tinham carácter secreto e não podiam levantar qualquer suspeita. Para o garantir, chegou-se a partir à pedrada algumas lâmpadas que iluminavam demasiado alguns locais, e que foram repostas depois do 25 de Abril. Mesmo assim, houve um momento de suspense, quando parou uma viatura a certa distância, e dela saíram quatro homens com um aspecto que, ao Capitão Pena Madeira, pareceu ser característico dos agentes da PIDE. Mas não se passou nada de especial e eles abandonaram o local, enquanto os militares retomavam o trabalho.
E às 6 da manhã do dia 24, o cabo telefónico chegaria, como previsto, à porta do Quartel da Pontinha, onde uma pequena equipa procedeu à sua consolidação, seguindo-se ensaios de continuidade nos locais mais importantes, tais como o Quartel-General da Região Militar de Lisboa, os Pupilos do Exército, o Serviço de Telecomunicações Militares em Sapadores e no Posto de Comando na Pontinha.

Das cinco linhas telefónicas instaladas, duas ficaram ligadas à central automática do Quartel-General, outras duas à central automática da Escola Prática de Transmissões em Sapadores, e a última destinava-se a fazer a ligação ponto-a-ponto entre a sala de operações do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas e a central automática da Escola Prática de Transmissões, onde iriam ser efectuadas escutas telefónicas, designadamente, às comunicações entre os Ministros da Defesa e do Exército, o Chefe de Estado Maior do Exército e as linhas militares que serviam a PIDE-DGS.
É com um misto de admiração e surpresa que vejo a forma emocionada e sentida como o General Pena Madeira recorda todas estas ocorrências. Parece estar a reviver esses momentos.
Relembra, ainda, o contributo importantíssimo das escutas realizadas para o êxito do 25 de Abril. Por curiosidade, recorda três delas:
A primeira – uma conversa entre os Ministros da Defesa e do Exército – foi interceptada às 03.31h, e nela o primeiro informava o segundo da ida do Presidente da República para Tomar, num momento em que todas as unidades do MFA já estavam fora dos quartéis e a caminho dos seus objectivos.
Na segunda – entre Marcelo Caetano e o General Andrade e Silva, Ministro do Exército, que se encontrava no seu gabinete no Ministério sito no Terreiro do Paço -, o Chefe do Governo questionava: “Então, Sr. General, este é que é o tal movimento sem importância, facilmente controlável?!”. “ Não há problema, Sr. Presidente do Conselho. A situação vai ficar controlada dentro em breve. Já tenho planeado o envolvimento das tropas. Fazemos avançar o Regimento de Cavalaria 7 e uma unidade da GNR. E a fragata Gago Coutinho, que está fundeada em frente ao Terreiro do Paço, estará preparada para bombardear os revoltosos que não se renderem.”

Foi esta informação que permitiu ao Movimento das Forças Armadas alertar a bateria de artilharia instalada no Cristo Rei e determinar-lhe que a fragata deveria ser bombardeada caso não aderisse ao movimento. O que, felizmente, veio a acontecer. Como todos sabemos, a referida fragata recusou-se a disparar sobre as tropas que já ocupavam o Terreiro do Paço.
Também o Capitão Salgueiro Maia, entretanto informado dos planos do governo, foi ao encontro do Regimento de Cavalaria 7 que, depois de algumas peripécias, desmobilizou já no Terreiro do Paço e passou para o lado do movimento. A GNR acabou retida pela população, pelo que nem chegou ao destino.
A terceira chamada interceptada que Pena Madeira recorda foi a de uma senhora que, com voz autoritária, teimava em falar com o Senhor Brigadeiro do Ministério. Alguém lhe disse que o Sr. Brigadeiro não podia atender. A mulher insistiu vezes sem conta, e já com a voz alterada e irritada, perguntou “ Quem fala daí? Sabe com quem está a falar? Eu sou a mulher do Brigadeiro e exijo que o chame imediatamente!”
Do outro lado, soou uma voz calma e educada, a do capitão Salgueiro Maia, que lhe disse: “Minha senhora, daqui fala o comandante da força do Movimento das Forças Armadas. O que acontece é que o seu marido acaba de fugir com o Senhor Ministro, por um buraco feito na parede, para o Ministério da Marinha.”
Finalmente o General Pena Madeira considerou importante fazer referência aos elementos que também estiveram directamente envolvidos neste processo:
– Tenente-Coronel Garcia dos Santos, Comandante das Transmissões da operação e que apresentou aos dois oficiais do Serviço Telefónico do Exército, o requisito operacional da necessidade de telefones automáticos ligados à rede telefónica militar que foram colocados no Posto de Comando do MFA na Pontinha;

– Capitão Veríssimo da Cruz que, com ele, foi corresponsável pela organização e concretização das actividades descritas. Desenvolveu uma acção notável dentro do quartel no aliciamento da secção de guarda-fios e do seu chefe;
– Furriel Miliciano Carlos Cedoura que, como chefe da secção de guarda-fios, aceitou executar o trabalho de lançamento do cabo telefónico, apenas sabendo que era urgente e clandestino.
De referir, ainda, que o Capitão Pena Madeira foi o único oficial de Transmissões que na rua acompanhou e colaborou na 1ª operação militar do 25 de Abril, que começou cerca de 3 dias antes, tendo inclusivamente, neste trabalho que se queria secreto, utilizado o seu carro particular como viatura de serviço. Os telefones instalados na Pontinha foram transportados no seu porta-bagagens. Esta participação é praticamente desconhecida, mesmo entre os militares de Transmissões da sua geração.

Conheço o General Pena Madeira há muitos anos. É um homem afável, de uma extrema educação, mas o que mais me cativa na sua personalidade é a grande capacidade que tem para contar histórias. Põe nelas uns pós mágicos que as tornam brilhantes e fascinantes, sem nunca alterar a sua autenticidade e veracidade. Prega-nos ao assento de qualquer cadeira e os nossos olhos mal se conseguem desviar do espaço onde relembra as suas experiências. E a magia envolve-nos nas palavras que ele tão bem sabe usar e abusar.

Estes acontecimentos que antecederam de perto o 25 de Abril, embora desconhecidos da grande maioria da sociedade portuguesa, foram fulcrais e decisivos para o seu sucesso. Contados de viva voz, como me foi dado ouvir, tornam-se momentos muito ricos e arrebatadores, e reforçam, ainda mais, o respeito e admiração devidos aos militares que, naqueles dias, correram riscos e perigos que muitos de nós nem imaginamos.
O Capitão Pena Madeira cumpriu a delicada e temerária missão que lhe tinha sido atribuída, e depois, como é apanágio dos militares, passou ao anonimato.
Obrigada, Senhor General.