As minhas mãos nas tuas

Existem pais de vários tipos, o meu é do tipo fenomenal.

Hoje, voltei a lembrar-me duma história que me ficou na memória, não porque me pudesse lembrar dela, mas porque a ouvi contar inúmeras vezes. Aconteceu comigo, e só para mim é que ela tem valor. Foi uma experiência única, que se transformou num elo que nos ligou e que, ao longo da nossa vida, se foi consolidando.

Assim que nasci, o meu pai, embevecido, habituou-se a adormecer-me com a minha mão na dele.

Passava o braço por entre as grades do berço e, como um íman, os meus deditos agarravam-se aos dele. Ao fim de algum tempo, a posição tornou-se desconfortável para o meu pai e, após algumas semanas, cansado, pedia à minha mãe que trocassem as mãos. Assim, eu começava a noite apanhando-lhe os dedos e, pouco tempo depois, sorrateiramente, ele trocava a mão dele pela da minha mãe, numa tentativa de me enganarem.

Apesar de ter apenas alguns meses de vida, mal a mão dele era substituída, bastavam escassos minutos para que eu percebesse a marosca e começasse a chorar, o que muito os surpreendia.

Não porque o encaixe também não fosse perfeito, mas porque me faltava a segurança e a firmeza transmitida pela mão dele.

Por isso, sempre que tentavam trocar de mão, os meus dedos, já desconfiados, tacteavam-na e, depois de identificada, ora chorava ou não. E se a mão que sentia não fosse a dele, berrava até ele ma dar, confortando-me e calando-me.

Quando as minhas irmãs nasceram, é óbvio que ele não se atreveu a repetir o mesmo gesto, embora o amor, esse continuasse a transbordar-lhe por todos os poros, sempre dedicado e derramado por todas as filhas.

Ao longo dos anos, esta história foi-se repetindo, recontada vezes sem conta por ele, enquanto confessava o quanto o perturbou o facto de eu, tão pequenina, reconhecer e reclamar todas as noites o toque da sua mão.

Hoje, dia em que completo mais um ano de vida, estive de novo de mãos dadas com ele e com a convicção de que o meu pai será um amigo para sempre, pela determinação do toque da sua mão vigorosa e pelo amor que emana dele, como se de um perfume se tratasse, pois perdura no ar de modo constante e permanente, animando a vida à nossa volta, oxigenando o amor que lhe tenho e que ele bem merece, pois tem sido toda a vida um pai exemplar.

Pai, será que consegues imaginar o quanto te adoro!?

Ana Fontão e a sua 1ª exposição individual

Resultando da simples percepção visual, a primeira impressão é a cor. Depois, vem a vontade de tocar, provar, ouvir ou cheirar. Porque só através dos sentidos conseguimos saciar o nosso ser.

E tudo isto nos pode acontecer ao olharmos um simples cheesecake. Quando se corta a primeira fatia sentimos, de imediato, as diversas texturas desse doce como se nos chamassem, atraindo-nos para novas sensações, que chegam trespassando-nos.

À primeira garfada que se derrete na boca, as texturas tomam formas, como se a bolacha da base fosse areia. Experimentamos os grumos do queijo, a gelatina solidificada, a firmeza natural dos frutos silvestres e a maciez de todo o conjunto.

O mesmo acontece com Ana Fontão. Um doce de pessoa.

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E a sua obra reflecte bem a cor que nos liga a fortes emoções, aos diferentes materiais que se interligaram, fosse com pincéis ou com as mãos, como se a autora tivesse explodido para depois se estampar em cada tela. Revela-nos a sua intimidade em cada pincelada, contando-nos o que lhe vai na alma.

Estes são os verdadeiros “elementos” que pairam dentro de Ana Fontão como uma “tabela pictórica” construída por ela própria.

É a primeira exposição individual da pintora, mas apresenta-nos já, como numa retrospectiva, tudo o que tem pintado desde 2008, ano em que a sua veia artística despontou. Mostra-nos as diferentes fases por onde caminhou, procurando os seus ”elementos”, brotando fogo como um vulcão prestes a entrar em erupção, estourando em cores que escorrem pela sua obra, esvaziando-se de todas as emoções que a sua inspiração alojava.

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Em 1960, Ana Fontão nasce em Lisboa e, por ser filha de um oficial do exército, passa os primeiros 13 anos de vida em África, entre Angola e Moçambique.

Como qualquer criança que vive toda a sua infância e adolescência naquelas terras vibrantes, Ana absorve, qual mata-borrão, um mundo completamente distinto, que começa a admirar e a amar. Adora o deserto, os embondeiros nus, o vermelho das acácias, as culturas tão díspares e tão particulares. Tudo arde dentro dela, revolucionando-a em sentimentos ora arrebatados ora calmos, em sensações contraditórias, em antónimos que fecha dentro de si, como se se tratasse de um verdadeiro tesouro que não quer esquecer.

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Mas não foi só a vivência em África que marcou Ana. A mãe também teve um papel relevante. Através da sua sensibilidade, do seu dom de estética, influenciou-a de modo a começar a olhar o mundo sob novas formas, fazendo-a sonhar até se enfeitiçar num imaginário sem limites.

Licenciou-se em Arquitectura Paisagista pela Universidade de Évora, em 1986, fez pós-graduação em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental no Contexto da Comunidade Europeia pela Universidade Nova de Lisboa, em 1993, tendo estudado, no decurso da sua licenciatura, história da arte, história da pintura, desenho, geometria descritiva, entre outras matérias que se revelaram importantes para a sua pintura.

Na sua formação, que é de base científica, a criatividade esteve sempre presente, e a sua expressão plástica surge espontaneamente, numa paixão que nela se debateu para rebentar num deslumbrante arco-íris bem delineado, num céu salpicado de nuvens brancas.

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E quando o corpo é pequeno para a alma, rasgam-se as emoções e tudo se projecta para a tela em ondas, num movimento onde as cores fluem do âmago, transmitindo para o exterior o seu profundo desassossego.

Tudo isto é claro. Afinal, a primeira impressão é sempre a cor.

Mileva Maric – a mulher de Einstein

A História insiste em esconder as mulheres que viveram sempre na sombra dos homens, e a história que hoje vos trago é apenas mais um desses casos, entre muitos.

Surge com a descoberta de “54 cartas de amor” que Albert Einstein escreveu à sua primeira mulher, Mileva Maric (e que ela guardou religiosamente), dando origem a uma polémica sobre até que ponto Mileva terá ou não contribuído cientificamente para a obra do famoso físico.

As dúvidas tornam tudo relativo. Para mim, esta é a verdadeira teoria da relatividade.

Mileva Maric nasceu na Sérvia, em 19 de Dezembro de 1875. Descendente de uma família rica, mostrou, desde muito jovem, ser uma menina com uma inteligência excepcional.

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Desde a nascença que apresentava um problema nas pernas que, naquela época, a medicina ainda não conseguia corrigir, pelo que foi obrigada a viver com essa deficiência toda a sua vida. Apesar de se revelar extraordinariamente talentosa e inteligente, viu ser-lhe negada a entrada em várias faculdades na Europa. Mas como o pai, oficial do Governo do império Austro-Húngaro, lhe quis dar a melhor educação possível, enviou-a para Zurique, a fim de que pudesse estudar Medicina.

Entretanto, no ano de 1896, Mileva desistiu desse curso e matriculou-se em Física e Matemática, no Polytechnikum de Zurique (ETH a partir de 1911), onde conheceu Albert Einstein. Foi a única mulher a conseguir entrar, então, na faculdade, e viria a ser figura de destaque naquele prestigiado curso de matemática. Mileva e Albert tornaram-se colegas e depressa ficaram amigos. Sabe-se que estudavam juntos, e que assim conseguiram resolver complexos teoremas matemáticos.

A admiração que nutriam um pelo outro acabou por se transformar em amor. Este romance, que começou em 1986, originou “54 cartas de amor” e uma filha, a qual foi mantida em segredo pelas famílias. Até hoje, nada se sabe ao certo sobre ela, mas pensa-se que tenha sido dada para adopção. Só há conhecimento da existência desta criança através das cartas trocadas pelo casal, onde há uma breve referência de que a menina (de nome Liesl) teria morrido de escarlatina.

Casaram-se em 1903. Em 1905, Albert Einstein publicou a primeira versão da Teoria da Relatividade, onde o nome de Mileva constava como co-autora. Mas a referência desapareceu nas versões seguintes. Com base nisto e nas secretas cartas de amor que foram encontradas em 1981, e em que o cientista fala da “nossa teoria”, surgiu uma polémica, que possivelmente nunca será desvendada, sobre em qual dos Einstein deve recair o mérito do trabalho. Há quem levante a dúvida sobre se Albert conseguiria ter chegado à “Teoria” sozinho, sem o precioso auxílio de Mileva. Tudo indica, assim, que Mileva terá resolvido, ou ajudado a resolver, parte do raciocínio matemático desta Teoria, o que não é, de todo, pouco, face à enorme complexidade da matéria.

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O casal teve mais dois filhos: Hans Albert e Eduard. Após o nascimento do segundo, Mileva afastou-se das ciências para cuidar da família, e o casal entrou em ruptura. A separação representou um golpe muito duro na vida dela, do qual nunca recuperou.

Albert amantiza-se, entretanto, com uma prima, Elsa Löwenthal, com quem viveria até à morte dela.

A mulher talentosa que abdicou da carreira pela família adoece e, em 1919, concretiza-se o divórcio, cinco anos depois da separação. No acordo deste divórcio existia uma cláusula em que o cientista aceitava entregar-lhe todo o dinheiro que eventualmente ganhasse com um Prémio Nobel. Quando, em 1921, Einstein recebeu este prémio, entregou o respectivo valor a Mileva, deixando transparecer que assim reparava algum tipo de injustiça.

O nome Mileva Maric foi-se apagando, até ser esquecido pela História. Para além de um livro de Djordje Krstic, intitulado “Albert e Mileva Einstein – seu amor e colaboração”, que menciona a pesquisa deste autor sobre o casal, foi ainda criado pela Universidade de Novi Sad, em 1994, o Prémio Mileva Maric, a atribuir ao melhor estudante de matemática.

Não há dúvidas de que a teoria da relatividade é de um Einstein. Resta-nos saber de qual deles?!

Pode-se ver o documentário em: https://www.youtube.com/watch?v=O4YaAVo3tvg

” Na mesma como a lesma “

Há muitos anos, houve um pedaço de terra onde o sol nascia e se punha quase todos os dias do ano, e o seu povo, pobre, cantava uma espécie de canção muito triste e melancólica. A maior parte vivia da agricultura que aquele clima ameno favorecia e, consequentemente, havia muitos caracóis que eles aprenderam a cozinhar. Ao longo dos anos, esse prato foi-se apurando até se tornar num verdadeiro petisco, ajudando-os a matar a fome que o rei lhes impunha, mesmo tendo muitas outras terras riquíssimas espalhadas pelo mundo. Era um reino rico, muito rico, cheio de ouro e com um povo muito pobre, onde nem os caracóis escapavam.

Depois de esse rei morrer, sucederam-se outros que prometeram, de imediato, mudar a vida dessas pessoas sem nunca o terem conseguido, até que um dia acabaram com uma grande parte da agricultura, convencendo o povo de que teria uma melhor vida vendendo apenas o calor do sol. A fome, como um vírus, foi-se alastrando de ano para ano. O povo era tão sereno e submisso que, entre umas buchas de pão, às vezes ensopadas no molho dos caracóis, lá ia sobrevivendo.

Não se sabe bem como, de muito rico o reino passou a pobre, até que ficou cheio de dívidas para com outros reinos sem que em nada tivesse melhorado a vida do povo, que ao cinto teve de ir acrescentando novos furos.

Era um raio de uma terra onde só os incêndios – que lá iam queimando vivos uns caracóis -, o desemprego e a fome se desenvolviam.

E essa gente era tão boa que, apesar de descontente, resignava-se sem nunca protestar. Entre lamúrias lançadas ao vento, as pessoas conformavam-se com a má sorte de andarem de estômago cada vez mais vazio, sem quase nunca se queixarem. Ainda assim, alguns mais corajosos, talvez pela ousadia da juventude, partiram para outras terras distantes; e os que ficaram tentavam animar-se, acreditando que melhores dias viriam, num futuro que nunca diferiu do presente. Muitos acabaram a criar pequenas hortas, que despontavam em qualquer lugar, até no mais inóspito, na expectativa de acalmarem alguns estômagos mais doridos.

Contudo, esta gente era muitíssimo nobre. Pacientes e habituados que estavam a sofrer, foram-se tornando cada vez mais humanos.

Um dia, também feito de sol, um grupo decidiu lançar um repto para que se salvasse o caracol do sofrimento de ser cozido e transformado numa iguaria. O povo, sabendo bem o que era sofrer, aderiu em massa, e os caracóis começaram a desenvolver-se em lindas caracoletas que se podiam apreciar em qualquer horta, mesmo nas improvisadas.

Em pouco tempo, não havia couve ou alface, nada que fosse verde que escapasse à fome voraz destes moluscos, e eles multiplicavam-se livremente, dia após dia com a casa às costas, varrendo até as pequenitas hortas, único sustento daqueles coitados.

Mas a generosidade do povo para com qualquer animal vivo crescia e mantinha-se saudável. Era tão forte que até os ricos, para mostrarem complacência e solidariedade para com estes animais, aos quais (pelas costas) chamavam de “lesmas”, até deixaram de comer ostras vivas.

Foi assim que, pouco a pouco, todos os animais começaram a ser poupados e banidos da já escassa alimentação deste povo.

Neste reino, onde até as terras e a água há muito haviam sido vendidas para pagar as dívidas, e agora nem sobrava qualquer espécie de alimentação, as pessoas começaram a definhar e a morrer de fome, uma a uma… até desaparecerem por completo num reino que ia encolhendo.

Tão fiéis eram aos seus ideais que acabaram por morrer todos.

E assim se fez jus à profecia de um homem magro muito importante, um eurodeputado, que outrora fora gordo talvez por comer demasiados caracóis, e que vaticinara o desaparecimento daquele reino e de todos os seus habitantes, com as seguintes palavras: “Vai haver um dia em que não vai haver Portugal”. Porque, justificava ele, este povo teria de devolver as terras  roubadas aos mouros há 800 anos.

Grande burrice

Contrariamente a muitos “burros” que, neste dia, vieram à minha memória, o burro é hoje, infelizmente, um animal em extinção. Pena que os outros que por aí andam também não estejam em vias de desaparecer, o que nos faria muito mais felizes.

Menor que o cavalo e com as orelhas desmesuradamente maiores, este animal, contrariamente aos outros, é um excelente trabalhador graças às suas características: paciente, detentor de uma força fora do comum e de uma enorme capacidade de trabalho, mesmo em condições muito adversas. Come pouco, vivendo, muitas vezes, apenas das sobras dos outros animais. Tudo isto me leva a crer que ele é, de facto, um animal de um valor inestimável para o homem.

Só me resta lamentar que os outros “burros” que conheço, não tenham aprendido absolutamente nada com o original. Seriam muito mais úteis e muito menos burros.

Escritora