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Um dos primeiros passos para o sucesso do 25 de Abril

Nenhuma operação militar pode ter sucesso, sem contar com uma rede de comunicações bem montada e fiável. Por isso, ao contrário do que muitas pessoas pensam, o 25 de Abril começou uns dias antes, com uma acção pouco conhecida, discreta e eficiente, como é timbre das Transmissões, e reconhecidamente fundamental para o êxito do 25 de Abril.

É sempre muito estimulante ouvir da boca dos participantes nos grandes acontecimentos o relato de como eles se desenvolveram, bem como de alguns episódios ignorados pela grande maioria das pessoas. Foi esse o privilégio que tive, ao escutar o General Pena Madeira, na altura um jovem capitão.

A 20 de Abril de 1974, foi-lhe determinado, pelo então Tenente-Coronel Garcia dos Santos, que estabelecesse a integração na rede telefónica automática militar do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, que iria ser montado no Regimento da Pontinha, para que pudesse ficar ligado a todas as unidades do Exército. Analisado o problema, foi decidido que essa incorporação iria ser feita com recurso a um cabo telefónico aéreo de 5 pares, que teria o seu início no Instituto dos Pupilos do Exército e iria percorrer uma distância aproximada de 4,5 km. Trabalho nada fácil, mas que teria de ser feito, e bem, para que não se pusesse em risco o funcionamento eficaz do Posto de Comando, sem o qual as operações do 25 de Abril poderiam estar condenadas ao fracasso.

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Os trabalhos, a cargo da secção de guarda-fios, iniciaram-se ao crepúsculo de segunda-feira, 22 de Abril. Pelas 4 horas da manhã do dia 23, tinha-se conseguido lançar o cabo telefónico até ao Colégio Militar, sendo que a tarefa foi facilitada pelo facto de ter sido apoiado nos postes telefónicos militares já existentes ao longo de todo o percurso. Durante a manhã foram efectuados trabalhos de consolidação, tendo esta primeira fase sido dada como concluída pela hora do almoço do dia 23.

Cerca das 20 horas, deste mesmo dia, foi iniciada a segunda fase de lançamento que iria ligar o Colégio Militar à Pontinha. Nesta fase, tudo se tornou mais complexo, dado não existirem pontos de apoio onde o cabo pudesse ser amarrado. A juntar a estas dificuldades, o tempo galopava. Assim, o cabo foi lançado com recurso à capacidade de improviso que parece ser típica dos militares de Transmissões, passando por postes, esquinas dos prédios e até pela copa das árvores. Acresce que as actividades que estavam a ser executadas tinham carácter secreto e não podiam levantar qualquer suspeita. Para o garantir, chegou-se a partir à pedrada algumas lâmpadas que iluminavam demasiado alguns locais, e que foram repostas depois do 25 de Abril. Mesmo assim, houve um momento de suspense, quando parou uma viatura a certa distância, e dela saíram quatro homens com um aspecto que, ao Capitão Pena Madeira, pareceu ser característico dos agentes da PIDE. Mas não se passou nada de especial e eles abandonaram o local, enquanto os militares retomavam o trabalho.

E às 6 da manhã do dia 24, o cabo telefónico chegaria, como previsto, à porta do Quartel da Pontinha, onde uma pequena equipa procedeu à sua consolidação, seguindo-se ensaios de continuidade nos locais mais importantes, tais como o Quartel-General da Região Militar de Lisboa, os Pupilos do Exército, o Serviço de Telecomunicações Militares em Sapadores e no Posto de Comando na Pontinha.

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Das cinco linhas telefónicas instaladas, duas ficaram ligadas à central automática do Quartel-General, outras duas à central automática da Escola Prática de Transmissões em Sapadores, e a última destinava-se a fazer a ligação ponto-a-ponto entre a sala de operações do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas e a central automática da Escola Prática de Transmissões, onde iriam ser efectuadas escutas telefónicas, designadamente, às comunicações entre os Ministros da Defesa e do Exército, o Chefe de Estado Maior do Exército e as linhas militares que serviam a PIDE-DGS.

É com um misto de admiração e surpresa que vejo a forma emocionada e sentida como o General Pena Madeira recorda todas estas ocorrências. Parece estar a reviver esses momentos.

Relembra, ainda, o contributo importantíssimo das escutas realizadas para o êxito do 25 de Abril. Por curiosidade, recorda três delas:

A primeira – uma conversa entre os Ministros da Defesa e do Exército – foi interceptada às 03.31h, e nela o primeiro informava o segundo da ida do Presidente da República para Tomar, num momento em que todas as unidades do MFA já estavam fora dos quartéis e a caminho dos seus objectivos.

Na segunda – entre Marcelo Caetano e o General Andrade e Silva, Ministro do Exército, que se encontrava no seu gabinete no Ministério sito no Terreiro do Paço -, o Chefe do Governo questionava: “Então, Sr. General, este é que é o tal movimento sem importância, facilmente controlável?!”. “ Não há problema, Sr. Presidente do Conselho. A situação vai ficar controlada dentro em breve. Já tenho planeado o envolvimento das tropas. Fazemos avançar o Regimento de Cavalaria 7 e uma unidade da GNR. E a fragata Gago Coutinho, que está fundeada em frente ao Terreiro do Paço, estará preparada para bombardear os revoltosos que não se renderem.”

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Foi esta informação que permitiu ao Movimento das Forças Armadas alertar a bateria de artilharia instalada no Cristo Rei e determinar-lhe que a fragata deveria ser bombardeada caso não aderisse ao movimento. O que, felizmente, veio a acontecer. Como todos sabemos, a referida fragata recusou-se a disparar sobre as tropas que já ocupavam o Terreiro do Paço.

Também o Capitão Salgueiro Maia, entretanto informado dos planos do governo, foi ao encontro do Regimento de Cavalaria 7 que, depois de algumas peripécias, desmobilizou já no Terreiro do Paço e passou para o lado do movimento. A GNR acabou retida pela população, pelo que nem chegou ao destino.

A terceira chamada interceptada que Pena Madeira recorda foi a de uma senhora que, com voz autoritária, teimava em falar com o Senhor Brigadeiro do Ministério. Alguém lhe disse que o Sr. Brigadeiro não podia atender. A mulher insistiu vezes sem conta, e já com a voz alterada e irritada, perguntou “ Quem fala daí? Sabe com quem está a falar? Eu sou a mulher do Brigadeiro e exijo que o chame imediatamente!”

Do outro lado, soou uma voz calma e educada, a do capitão Salgueiro Maia, que lhe disse: “Minha senhora, daqui fala o comandante da força do Movimento das Forças Armadas. O que acontece é que o seu marido acaba de fugir com o Senhor Ministro, por um buraco feito na parede, para o Ministério da Marinha.”

Finalmente o General Pena Madeira considerou importante fazer referência aos elementos que também estiveram directamente envolvidos neste processo:

– Tenente-Coronel Garcia dos Santos, Comandante das Transmissões da operação e que apresentou aos dois oficiais do Serviço Telefónico do Exército, o requisito operacional da necessidade de telefones automáticos ligados à rede telefónica militar que foram colocados no Posto de Comando do MFA na Pontinha;

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– Capitão Veríssimo da Cruz que, com ele, foi corresponsável pela organização e concretização das actividades descritas. Desenvolveu uma acção notável dentro do quartel no aliciamento da secção de guarda-fios e do seu chefe;

– Furriel Miliciano Carlos Cedoura que, como chefe da secção de guarda-fios, aceitou executar o trabalho de lançamento do cabo telefónico, apenas sabendo que era urgente e clandestino.

De referir, ainda, que o Capitão Pena Madeira foi o único oficial de Transmissões que na rua acompanhou e colaborou na 1ª operação militar do 25 de Abril, que começou cerca de 3 dias antes, tendo inclusivamente, neste trabalho que se queria secreto, utilizado o seu carro particular como viatura de serviço. Os telefones instalados na Pontinha foram transportados no seu porta-bagagens. Esta participação é praticamente desconhecida, mesmo entre os militares de Transmissões da sua geração. 

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Conheço o General Pena Madeira há muitos anos. É um homem afável, de uma extrema educação, mas o que mais me cativa na sua personalidade é a grande capacidade que tem para contar histórias. Põe nelas uns pós mágicos que as tornam brilhantes e fascinantes, sem nunca alterar a sua autenticidade e veracidade. Prega-nos ao assento de qualquer cadeira e os nossos olhos mal se conseguem desviar do espaço onde relembra as suas experiências. E a magia envolve-nos nas palavras que ele tão bem sabe usar e abusar.

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Estes acontecimentos que antecederam de perto o 25 de Abril, embora desconhecidos da grande maioria da sociedade portuguesa, foram fulcrais e decisivos para o seu sucesso. Contados de viva voz, como me foi dado ouvir, tornam-se momentos muito ricos e arrebatadores, e reforçam, ainda mais, o respeito e admiração devidos aos militares que, naqueles dias, correram riscos e perigos que muitos de nós nem imaginamos.

O Capitão Pena Madeira cumpriu a delicada e temerária missão que lhe tinha sido atribuída, e depois, como é apanágio dos militares, passou ao anonimato.

Obrigada, Senhor General.

O pintor de Jazz

Para além de pintar quadros, onde podemos reconhecer algumas importantes figuras do Jazz, Xicofran tem o dom de, também, pintar música.

Quando olhamos para um quadro do “pintor do Jazz”, como ele é conhecido, algo de estranho vibra dentro de nós. Não sei se são as cores, se o movimento por onde os pincéis deslizaram, mas asseguro-vos que todas as suas obras emanam som, numa música que só Xicofran sabe tocar.

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As cores dançam, formando bailados a que os nossos olhos não resistem. O traço leva-nos para além da imaginação, faz-nos ouvir uma melodia que se solta de tudo o que Xicofran pinta. O movimento que ele confere às pinceladas marca-lhe o ritmo. Depois, é só deixarmo-nos levar pela imaginação, para que as notas improvisadas do Jazz comecem a soar dentro de nós.

Como num prenúncio do que viria a ser a sua vida futura, Francisco Fernandes nasceu em terras africanas de Angola, no seio da cultura negra, no ano de 1969, numa década em que a criatividade deste género musical se encontrava no auge com Coltrane, Miles Davis, Chet Baker, Herbie Hancock, entre muitos outros.

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Em garoto, começou por tocar viola. Hoje, ouvimos a sua música através da pintura. E, repito-vos, como é bela a melodia que resulta deste dueto em que ambas, música e pintura, saem triunfantes.

A sua obra é uma orquestra que vai dando corpo a uma espécie de sinfonia que toca a sensibilidade de todos os amantes da arte em que este maestro se move e compõe. E assim vai-nos conduzindo a interpretar, a enternecermo-nos e a apreciarmos as imagens que a sua sensibilidade desenha, em amontoados de tinta que ele vai entornando sobre as telas, tingindo-nos até à alma.

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Xicofran é um homem simples, simpático, afável. Pai de uma menina encantadora, a Francisca, e casado com a porventura única Elga sem H, que se tornou para o artista “a tal”, e com quem ele quis formar família. Uma família maravilhosa.

O seu percurso artístico passou por diversas etapas. Começou pelo curso Superior de Design de Interiores na Escola Superior de Artes Decorativas (ESAD), que terminou em 1994, e onde teve como professora a pintora Dora Iva, que o incentivou então para outros voos. Assim, nesse mesmo ano concorreu ao concurso “Jovem revelação da Amadora”, mesmo sendo de Almada. E ficou logo em 1º lugar. Mas o melhor prémio que recebeu nesse dia, como me confessa, foram aquelas palmadinhas nas costas do Mestre Artur Bual, num estímulo para que continuasse.

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Outro Mestre que conheceu pouco depois, e se tornou numa figura importante no seu percurso, foi António Inverno, que lhe transmitiu importantes conhecimentos, transformando o seu já afinado dom numa Primavera onde floresciam o “equilíbrio das telas e os magníficos pontos de luz”, técnicas que enriqueceram os seus trabalhos. Outro dos nomes mais relevantes com quem se cruzou foi João Moreira Santos, escritor e crítico de Jazz, que o conduziu para o mundo da música, apresentando-o a alguns nomes do Jazz, sendo a cantora Maria Viana um deles. Desde logo, uma grande amizade se cimentou entre os dois, que perdura até hoje numa parceria em que cada um dá o melhor que tem do seu Jazz. Nesta relação artística o facto mais saliente foram as ilustrações que o Xico fez para o livro comemorativo dos trinta anos de carreira da Maria.

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Muito mais haveria para contar sobre o trajecto de Xicofran, mas estas pinceladas já poderão retratar bem o caminho que levou este artista a ser reconhecido como o “pintor de Jazz”, ainda que o seu trabalho envolva outros temas.

Mas o que talvez vocês não saibam é que existiu um outro “Fran” no seu percurso artístico. Uma história deveras engraçada, que ele me confidenciou.

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Há alguns anos, Francisco tinha um amigo de longa data, daqueles amigos inconfundíveis, que são tão nossos que mais parecem irmãos.

Pois bem, esse rapaz, que ainda hoje permanece no rol das suas maiores amizades, chama-se António Pedroso. E de uma conversa entusiasta entre os dois, surgiu a ideia de que seria proveitoso e útil que Xico tivesse um agente que pudesse tratar dos seus assuntos, uma vez que o trabalho tinha duplicado, deixando o artista com pouco espaço para tantos afazeres. Ficou decidido que António seria esse agente, pois em comum, para além da amizade, havia uma enorme cumplicidade e confiança. 

Empolgado, António começou, de imediato, a delinear na sua mente todos as ideias que lhe pareciam interessantes para o projecto que haviam acabado por formalizar, num acordo verbal.

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Nesse mesmo dia, o amigo ligou a Xicofran, empolgadíssimo com as propostas que tinha em mente, mas antes de falar delas, disse-lhe que havia tido a ideia brilhante de arranjar, também para ele próprio, um nome artístico. E que, por isso, passaria a usar, para se apresentar como seu representante, o nome de “Pedrofran”, uma vez que Xico o chamava de Pedro, por culpa do seu apelido.

Xicofran e Pedrofran! Aquilo não soou lá muito bem a Francisco, mas acabou por aceitar, pelo fervor que “Pedro” colocara na questão e pela consideração que ele lhe merecia.

Claro que, mal o amigo começou a usar aquele nome “artístico”, surgiram algumas confusões, por causa da excentricidade do nome, e era comum pensarem que se tratava de dois irmãos, o que fez com que “fran” fosse confundido com um simples apelido familiar.

Esta história deu que falar na altura, e contada hoje por Francisco, soa engraçadíssima. Pedrofran já não é o seu representante, mas continua a fazer parte da vida de Xico, como um dos seus melhores amigos.

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O que não me admira. Porque é muito fácil ser-se amigo deste jovem “pintor de jazz”, que faz da simplicidade, simpatia e boa disposição atributos que nos levam a desejar ficar longas horas na sua companhia.

Fotos tiradas na Galeria CNAP – Clube Nacional de Artes Plásticas

Mestre Pádua: o pintor compulsivo

Quando chego ao atelier do Mestre José Pádua – e esta não foi, de todo, a primeira vez que o testemunhei -, ele senta-se e demora não mais de dez minutos para começar a desenhar. Antes de dizer seja o que for, marco o tempo. E atiro-lhe:

“Incrível como em apenas cinco minutos fez um desenho fabuloso!”

Ele responde-me, no seu habitual tom de brincadeira:

“ Não. Foram precisos 50 anos, querida amiga.”

Nascido a 13 de Maio de 1934, José Carlos Manuel Abrantes Pádua é natural da Cidade da Beira, Moçambique, e aí desenvolveu a sua arte.

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É autor de inúmeras ilustrações publicadas em jornais, revistas e livros, e de trabalhos de escultura e de azulejaria, bem como murais em cimento expostos nos Aeroportos de Maputo e da Beira, no Banco Pinto & Sotto Mayor, no Montepio de Moçambique, no Banco de Crédito Comercial e Industrial, entre muitos outros. Destaca-se, ainda, o seu trabalho no Bank of Lisbon & South Africa, em Joanesburgo.

Além destas importantes obras contam-se, ainda, painéis em casas particulares.

Entre todos estes trabalhos, houve um ou outro que o levou ao hospital, porque a sua saúde se foi ressentido, mas a sua obra foi crescendo e expandindo-se, até na última vez que esteve internado, já neste mês de Novembro de 2014. E ri-se, enquanto me diz, mostrando o desenho:

“ Vi logo que estava bom quando consegui pintar este Cristo… antes disso, a minha mão ainda tremia”

Pádua retrata essencialmente o povo moçambicano, e pinta-o de todas as cores. Cada desenho seu deixa-me fascinada. E o Mestre desenha ainda nus e Cristos.

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Conta-me, sorrindo, que cada vez que pinta um nu se redime depois com a pintura de um Cristo. Pintar Cristos é algo que o fascina, como se sentisse a Sua dor. “Aquelas cordas que O prendem à cruz fazem qualquer um morrer asfixiado em 3 dias, e a dor …”, aquela dor atroz que ele imagina, que quase o persegue. Por entre os milhares de quadros e desenhos que enchem o seu estúdio, o Mestre tropeça e diz, sempre com um ar satisfeito e brincalhão “agora ia dizendo uma asneira e lá tinha de pintar outro Cristo.”

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Pintar, para Pádua, é uma necessidade. É um pintor compulsivo. Não pode ver um papel em branco. Até nos versos dos cheques chegava a fazer desenhos. “Um dia” disse-me ele “estava ao telefone com um amigo e, enquanto falávamos, fiz um desenho na capa dos cheques.” O que prova que nenhum papel em branco lhe resiste. No café, onde se encontrava com os amigos, “a malta dizia: olhem, vem aí o Pádua” e “todos faziam um traço de qualquer maneira no guardanapo”, pois “sabiam que eu os iria completar”.

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Já na escola, a professora dizia-lhe que quem iria preparar a sala para o Natal era ele. Trabalho que, imagino eu, não só lhe agradava, como o fazia, sem dúvida, na perfeição.

É um homem feliz, dono de um grande coração e de uma alma brincalhona, mas parte dela ficou (está ainda) em Moçambique, nas terras de África que um dia teve de deixar para trás, como muitos outros portugueses. E fala desse assunto com alguma tristeza, ao mesmo tempo que recorda tudo o que lá viveu. E foi uma vida plena de alegria, que ele procurou que fosse sempre contagiante.

Chega a arrepiar ouvi-lo a falar das suas aventuras africanas com amigos como Malangatana ou o pai de Mia Couto. Ou imaginá-lo numa viagem à América para fazer uma exposição, em que antes da inauguração já tinha vendido todos os desenhos! Ou, ainda, naquele dia 21 de Novembro de 1965, em que fez a 1ª exposição em Salisbúria, Rodésia, e em apenas duas horas vendeu 23 das suas obras.

Não menos arrepiante foi ouvi-lo dizer que todos os seus trabalhos, feitos entre os 15 e os 40 anos de idade, foram queimados em Moçambique, quando “o pintor do povo”, como lhe chamavam, se viu obrigado a abandonar a casa construída apenas um ano antes, e que estava cheia de painéis da sua autoria, “uma casa diferente” diz-me ele. Já com saúde fraca, resolveu partir para a Rodésia, enchendo um vagão com alguns dos seus pertences, incluindo parte da mobília.

“Perdi tudo!”– lamenta – “mas o que mais me custou foi quando me roubaram o chapéu, devo tê-lo pousado nalgum sítio e desapareceu! Isso é que foi um duro golpe!”

O chapéu, explica-me, tinha pertencido ao cantor e actor norte-americano Roy Rogers, que conheceu numa caçada. Depois de Pádua lhe fazer a caricatura, Roy ofereceu-lhe o seu chapéu branco, que fora feito especialmente para o famoso actor, e até tinha o seu nome gravado no interior. De tudo o que desapareceu, nada se comparou a esta perda. Conta-me que esta foi a mais dura prova por que passou nas terras quentes de África.

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Sem saber o que lhe dizer, sorrio. Ao mesmo tempo que penso como é grande este homem. Um homem à antiga. Daqueles ainda recheados de valores que dignificam o ser humano. Pádua não é só um grande pintor do nosso tempo, é também um ser humano gigantesco.

Sinto-me privilegiada por ter amigos assim! Bem-haja Mestre!

À Conversa com Carlos Prado Amorim

IMG_9999Tinha apenas 12 anos quando, pela mão dos seus pais, começou a frequentar os saraus que Amália Rodrigues fazia regularmente em casa. Iniciou, então, a convivência com artistas de vários quadrantes e alguns políticos, amigos da fadista. Os seus olhos brilham de nostalgia e saudade enquanto revive aqueles momentos e me dá a conhecer os nomes importantes que por lá passaram, todos ligados às artes. Maluda, David Mourão Ferreira, Natália Correia, Vinícius de Morais começaram, desde muito cedo, a fazer parte da vida de Carlos. Enquanto me relata como eram esses serões, fala com especial carinho da grande Amália, dizendo-me como era uma mulher simples, bonita e deveras interessante, e como absorvia toda aquela cultura que passava pelas suas mãos, como se ela fosse uma verdadeira esponja.

Relembra um dos mais famosos actores de origem mexicana, depois naturalizado norte-americano, Anthony Quinn, que se transformou num dos “gregos” mais destacados da história do cinema em “O Zorba”, e rememora como, numa dessas festas, esse talento em pessoa passou pela sua vida.

Cedo se interessou pela música brasileira, tendo sido Caetano o primeiro responsável por esse prazer. Procurou saber tudo sobre ele, comprou todos os seus discos, coleccionou tudo o que encontrou, fotos, revistas, chegando ao ponto de se deixar cativar por todos os artistas que haviam influenciado Caetano Veloso.

IMG_0004Entre esta amizade com a grande Amália e a sua paixão pela música, Carlos acabaria por formar-se… em medicina. Terminou a especialidade e chegou, até, a ser chamado na ausência do médico assistente da diva, consolidando assim laços que perduraram no tempo. Conta-me das confidências que ela lhe fazia sobre algumas figuras públicas da época e como algumas dessas pessoas lhe pediam favores. “E um pedido da Amália era uma ordem”, diz-me, abrindo o olhar. Ela ajudou muita gente! Uma grande senhora! Uma grande mulher!

IMG_0002Sempre que viaja, Carlos procura encontrar discos dos seus artistas preferidos. Diz-me que uma vez, em Hong Kong, encontrou um CD da Amália. Trouxe dois exemplares, um para ela e outro para ele. Como ela ficava feliz com estas descobertas… pois, por vezes, desconhecia certas edições. Carlos descreve estes pormenores com o tal brilho no olhar. Só não conseguiu encontrar um livro em que a Amália surgia a representar Portugal, e que se chamava “As divas do século XX”. Recorda o facto com alguma tristeza, e diz que foi a própria fadista a mostrar-lho, com orgulho. Tentou tudo para o encontrar, mas sem sucesso, porque já se encontrava fora do catálogo da editora.

IMG_0027Quando fala dos amigos, todos eles com grande afirmação no mercado, Carlos fala de amor. Do amor que sente pela música. E chega mesmo a confessar-me que, se não tivesse seguido medicina, certamente estaria hoje ligado à música, talvez fosse até produtor musical.

E assim, de ano para ano, de serão em serão, Carlos foi conhecendo os mais diferentes artistas e começou a ser convidado para outras reuniões, até chegar aos convívios do género no Brasil, país onde esses eventos se multiplicam numa escala maior.

Hoje, é amigo pessoal dos maiores nomes da música brasileira e também portuguesa. No seu iPhone estão registados os contactos pessoais e algumas fotos de artistas como Chico Buarque, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Ana Carolina, Maria Gadú, Seu Jorge. De Portugal, tem os de Marisa, Ana Moura, Rodrigo Leão, entre outros com quem pode “bater um papo” sempre que queira.

IMG_0097Recorda como conheceu Georges Moustaki, Charles Aznavour e Jane Birkin, que ficou célebre com a canção “Je T’aime, Moi Non Plus”, um enorme sucesso de 1969. Ele foi também uma das seis pessoas que Tony Bennett recebeu em Portugal, diz-me, com o olhar resplandecente.

Dou-me conta de um fenómeno estranho. Ouvir Carlos faz com que os ponteiros dos relógios andem mais depressa. Todas as histórias que nos conta estão envoltas num intimismo que, para mim, quase toca o surreal. Ouvi-lo falar de Chico Buarque soa como se eu falasse de uma irmã. Com genuinidade, vai-me contando que Chico tem três irmãs e três filhas, uma delas casada com Carlinhos Brown (cantor baiano). As irmãs dele são, também, todas artistas. A Cristina, a Ana de Holanda e a Miúcha, que é a mais velha e foi casada com o pai da Bossa Nova, João Gilberto, sendo ambos pais da Bebel Gilberto! “Uma família de talentos”, diz Carlos, sorrindo.

Todas estas vidas se entrelaçam na sua memória e vão por sua vez dar a outros nomes, e o imbecil do meu relógio continua a funcionar em modo turbo. Apetece-me despedaçá-lo, para poder continuar a ouvir todas aquelas narrativas. Porque Carlos é um bom contador de histórias, um homem que sabe chegar ao coração. Talvez por isso seja cardiologista.

Saltitando crónicas – e o meu interlocutor está pejado delas -, chegamos a uma que foi um “caso sério”.

IMG_0109Amigo de longa data de Beto, filho de Rita Lee, Carlos foi ter com a cantora ao hotel, para a cumprimentar. Quando ela lhe abriu a porta, apenas ouviu um gemido saído da garganta de Rita, numa tentativa para responder-lhe à saudação. Ele apercebeu-se de que a voz dela não conseguia emitir mais do que aquele som. Rita estava afónica e completamente desesperada, sem conseguir dizer uma palavra. De semblante triste, estava até decidida a anular o espectáculo do dia seguinte, no Coliseu de Lisboa.

Carlos não me revela o segredo, mas conta com prazer: “ Puxei das minhas armas terapêuticas e mediquei-a. No dia seguinte, fez o Coliseu vibrar com a sua voz impecável.”

Para além de cardiologista, ele é ainda professor na Faculdade de Medicina, um amante da música e um amor de pessoa.

Tínhamos de terminar. Foi com uma sensação mista de leveza, frustração, satisfação e enriquecimento, que me despedi dele. Parti com a certeza de que terei oportunidade de voltar a partilhar com o Carlos momentos inesquecíveis como aqueles que passámos juntos. Voltarei.